O efeito da Taxa de Juro e da Taxa de Inflação no Crédito Habitação

Na sequência do último artigo sobre o efeito da inflação no salário, e considerando a importância que o crédito habitação tem para as famílias portuguesas, instituições financeiras e para o Estado, partilho convosco a minha perspectiva.

O crédito a habitação é um contrato de crédito destinado ao financiamento da aquisição ou construção de habitação própria permanente, secundária ou para arrendamento. A hipoteca do imóvel é dada como garantia de reembolso, devido à probabilidade de ocorrência de múltiplos riscos associados ao longo prazo do período do financiamento.

A contratação dos créditos à habitação é realizada, habitualmente, a uma taxa de juro mista, composta por um indexante (variável) acrescido de um spread (fixo).

O indexante contratado, na generalidade dos casos, foi a taxa europeia Euribor – Euro Interbank Offered Rate, a prazos de 3/6/12 meses. Esta manteve-se negativa por um período superior a seis anos. Os cálculos das prestações foram efetuados apenas com o valor do spread contratado, sem sofrerem alteração. O período foi tão longo, que as pessoas quase esqueceram que a Euribor poderia voltar a ser positiva, com impacto significativo na prestação.

Porque está a Euribor a subir?

O atual contexto inflacionista, sentido por todos nós, alterou a política monetária do Banco Central Europeu, em julho 2022. Decidiu combater com determinação a inflação em alinhamento com a sua missão de garantir a estabilidade dos preços, através do aumento das taxas de juro.

A fixação de taxas de juro mais altas pelo Banco Central Europeu faz aumentar as taxas de juro praticadas pelos Bancos Nacionais junto dos seus clientes, assim como nos mercados em geral.

O custo de financiamento para empresas e particulares fica assim mais caro, condicionando desta forma os novos pedidos de financiamento quer para investimento quer para consumo.

Da mesma forma, porque a maioria dos créditos em curso foram contratados a taxa variável, os valores das prestações do seu reembolso aumentam, o que absorve rendimento disponível para o consumo. E todos sabemos que a exposição ao crédito é elevada quer pelas empresas quer pelos particulares.

A contenção da inflação por parte do Banco Central Europeu e dos Governos passa por medidas restritivas que provoquem um abrandamento no consumo das famílias, com efeitos sentidos do lado da oferta. Obriga as empresas a ajustar em baixa os seus preços, caso queiram continuar a vender os seus produtos e garantir a continuidade do seu fluxo de caixa para fazer face aos seus custos de funcionamento.

O efeito combinado do aumento da inflação, que faz reduzir o poder de compra, com o aumento das taxas de juro, que fazem subir os custos de financiamento, enfraquece forçosamente a capacidade de endividamento das empresas e dos particulares assim como o rendimento disponível para investimento e consumo.

Como sabemos, o crédito a habitação absorve uma parte significativa do rendimento das famílias.

De acordo com informação constante no Relatório de Estabilidade Financeira, divulgado em junho 2022, e no Relatório de Acompanhamento dos Mercados de Crédito 2021, divulgado em julho 2022, ambos emitidos pelo Banco de Portugal, em final de 2021 existia um saldo em dívida de crédito à habitação, no valor de 101,3 mil milhões de euros.

De acordo com a mesma fonte, em final de 2021, o valor total dos empréstimos a clientes ascendia a 247 mil milhões de euros. O total do ativo do sistema bancário totalizava 444 mil milhões de euros.

Isto significa que o crédito a habitação, em final de 2021, representava cerca de 41% dos empréstimos a clientes e cerca de 22,8% do total do ativo bancário.

Compreende-se, pois, a importância do contrato de crédito à habitação para as famílias, para o sistema financeiro e para o País.

Vejamos, na prática, o seguinte exemplo de crédito habitação

Considerei o capital médio de 126.580€ e o spread médio de 1,14% (valores médios de acordo com as fontes citadas). E a taxa de juro Euribor 12 meses que continua a ser a mais contratada. Em 1 de novembro era de 2,686% (fonte: https://www.global-rates.com/en/).

O exercício passa por calcular, para um prazo de 30 anos, a prestação à taxa Euribor 12 meses atual, calcular a mesma prestação há um ano, realizar análise de sensibilidade e tirar conclusões.

Impacto para o Consumidor que contratou/ contrata crédito à habitação

Prestação à taxa atual

Recorrendo à modalidade de prestação constante ou padrão, com amortização constante de capital e juro desde o momento inicial, com base na Euribor 12 meses a 2,686%, obtém-se uma prestação anual de 7.044 euros (reta a azul). A prestação inclui uma parte de reembolso de capital (amortização, em cor laranja) e de juro (remuneratório, em cor cinzenta).

No exemplo apresentado, caso os valores permanecessem constantes durante toda a vida útil do empréstimo, o cliente assume o pagamento de juros remuneratórios no total de 84.728€ e da devolução integral do capital 126.580€, nos 30 anos de prazo contratado.

Observe-se que durante a evolução do empréstimo (360 prestações) a componente do juro vai diminuindo e a componente do reembolso vai aumentando, ainda que a prestação seja constante.

Porque é relevante esta informação? Para alertar que serão os créditos mais recentes que irão sofrer mais com a subida das taxas de juro. Durante a primeira metade do prazo do empréstimo, o valor dos juros representa a maior parte do valor das prestações.

Na tabela à esquerda, apresento a decomposição de três anos de prestações: as doze primeiras, as doze a meio do período (prestações 175 a 186), e as doze do último ano (prestações 349 a 360).

O valor do juro e do reembolso de cada prestação varia durante todo o período do empréstimo, conforme referido, embora o valor mensal de 587€ da prestação seja constante, no pressuposto que a taxa de juro não sofre alterações (7.044€ anual).

Importa ainda realçar que as alterações à taxa de juro seguem a periodicidade do indexante Euribor. Se contrataram o indexante Euribor a 3 meses, 6 meses ou 12 meses, as taxas de juro sofrerão atualizações a cada trimestre, semestre ou ao ano, respetivamente.

Comparando agora com a situação no início da contratação (há um ano), em que a Euribor12m ainda era negativa.

Por esta razão, a Euribor era considerada zero no apuramento da taxa de juro mista (indexante + spread), ficando igual ao valor do spread de 1,14%.

Atualmente, a situação altera-se substancialmente. A prestação que era de 415€ passa a 587€, e o montante de juros totais a pagar que era de 22.811€ passa para 84.728€.

A escalada da subida das taxas de juro tem elevado impacto no valor das prestações a pagar ao Banco. O aumento excessivo das prestações pode comprometer a regularidade do pagamento do serviço da dívida aumentando, assim, a probabilidade do ressurgimento do crédito malparado.

Na tabela seguinte, usando o mesmo exemplo, realizei uma análise de sensibilidade à variação da taxa variável Euribor 12 meses, obtendo os valores anuais da prestação, reembolso e juro; os respetivos valores mensais da prestação; e o seu acréscimo quando comparado com o momento em que a Euribor ainda se mantinha negativa.

Caso a inflação continue a subir, o Banco Central Europeu continuará a subir as taxas de juro de referência, o que trará um impacto violentíssimo no crescimento das prestações mensais. No caso da taxa de juro Eur12m subir para 6%, acrescida do spread, a prestação mensal resultante (ver quadro) passará para 835€, cerca do dobro da prestação que existia no contexto da Euribor negativa.

Vamos acreditar que nunca chegaremos a este cenário. Os impactos nas famílias, no sistema financeiro e na economia seriam profundamente violentos e catastróficos.

Impacto para a Instituição Financeira financiadora de crédito à habitação

O impacto da taxa de inflação na prestação recebida pelo Banco também sofre alteração. O valor do dinheiro que recebe hoje é muito inferior ao valor do dinheiro que concedeu no momento do financiamento do empréstimo.

À primeira vista, porque o juro é mais alto dir-se-á que existe um ganho para os Bancos. Assim será se o valor da taxa de juro cobrada for superior à taxa de inflação, o que não se verifica no momento.

Para compreendermos melhor, no pressuposto que o cenário apresentado se mantém durante todo o período o empréstimo, temos de calcular o valor atual das prestações futuras, à taxa de atualização em período de inflação.

Vejamos a tabela abaixo.

 

Em cenário sem inflação, o valor atualizado das 360 prestações é igual ao valor do empréstimo concedido de 126.580€ (assinalado a verde na tabela).

Em cenário com inflação, por exemplo, à taxa de 10,2% durante os 30 anos de prazo do empréstimo, o valor atualizado das 360 prestações à taxa de atualização em período de inflação anual ri=14,4163% é igual a 47.999€, verificando-se uma desvalorização do valor do dinheiro emprestado de 78.581€.

[Atente-se à fórmula matemática (1+ri) = (1+r) * (1+f), em que “r” é a taxa de juro nominal e “f” é a taxa de inflação. Resolvendo em ordem a “ri” obtém-se a taxa de atualização em cenário de inflação “ri” = r + f + rf. No nosso exemplo, a taxa de atualização anual a usar em período de inflação é de 14,4163% = 3,826% + 10,2% + 3,826%*10,2%; em cenário sem inflação “ri = r” = 3,826%].

A medida da subida de juros por parte do Banco Central Europeu, pretende impor restrições ao consumo e ao investimento, por via da subida dos custos de financiamento.

Como já referido, é uma forma de absorver rendimento disponível que faz abrandar a procura (gastos) e, consequentemente, alterar em baixa a política de preços do lado da oferta. Desta forma, estanca-se a subida da inflação e repõe-se gradualmente a estabilidade de preços.

Mas esta medida, visa ainda proteger o sistema financeiro da desvalorização do capital emprestado, para que se garanta a sustentabilidade da sua atividade de intermediação de crédito.

 

Analisando o quadro abaixo que, se nada se fizesse, o valor atual das prestações futuras era cada vez mais baixo (em cor azul) e as perdas de valor progressivamente maiores (em cor laranja).

Para garantir os riscos da concessão de crédito, a taxa de juro praticada pelos Bancos deve ser ligeiramente superior à taxa de inflação, desejavelmente baixa, para que se garanta um sistema financeiro forte com capacidade para financiar continuamente a economia real.

A título de conclusão final.

Neste artigo verificou-se que desde o início da contratação, no exemplo de crédito a habitação apresentado, a prestação sobe cerca de 172€.

Se juntarmos a esta verba o efeito da inflação no salário de 1.000€, uma perda de poder de compra de 62,50€ mensal (apresentado no meu artigo anterior), estimamos uma perda total de 234,5€ do rendimento disponível. O que representa um quarto do rendimento líquido mensal. Infelizmente, perspectiva-se que esta situação se continue a agravar.

É preciso, no entanto, manter uma atualização salarial moderada, que não estimule o consumo até estar controlada a taxa de inflação, mas que mantenha a dignidade e o sustento das famílias, sem as arrastar para níveis de pobreza que poderão provocar a sua falência. O que certamente levaria o País para uma crise financeira similar há já vivida durante o período posterior à crise do sub-prime.

A situação de equilíbrio em níveis baixos, entre taxa de juro e de inflação, é a mais desejada, porque beneficia os Bancos e os Clientes, particulares e empresas. Uma reduzida taxa de inflação permite praticar de igual forma juros de financiamento baixos, facilitando o pagamento do serviço de dívida e o acesso a novo crédito.

Combater a inflação é um desafio enorme, devendo o Banco Central Europeu e os Governos estarem atentos aos especuladores de preços que transformam esta “doença económica” numa janela de oportunidade para maximizar os seus lucros de curto prazo, sem ter em atenção os efeitos que acarretam para os demais agentes económicos.

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